14/11/2016

O carrossel

A vida é um carrossel, que gira e gira, e tem os bonecos que sobem e descem ao som da música. Quando entrei no carrossel, ambicionava um lugar numa das chaveninhas floridas, ou no unicórnio cor de rosa, ou até mesmo numa girafa.
Mas neste carrossel não se pode escolher o lugar e o que me calhou foi um burrinho desconjuntado, já sem uma orelha, que nem subia nem descia, mas abanava por todos os lados, tornando a viagem desconfortável e assustadora. Tão instável que volta e meia caía do burrinho e tinha que andar aos tombos pelo meio do carrossel, à procura de um lugar, mas o único que encontrava era sempre o burrinho, para o qual tinha cada vez mais medo de subir, porque sabia que por mais que me agarrasse, mais cedo ou mais tarde ele ia voltar a atirar-me ao chão.
Numa volta mais rápida, fui projetada para fora do carrossel. Não sei como aconteceu, só sei que de repente estava no chão, fora do carrossel, tentando desesperadamente recuperar o folego. Quando consegui pôr-me de pé, fiquei parada a ver o carrossel girar. Girava tão rápido que só de olhar me punha tonta, quanto mais conseguir saltar de novo lá para dentro. Além disso, não via nenhum lugar para mim, nem sequer o burrinho desconjuntado. Toda a gente parecia divertir-se no carrossel, mas eu nunca me divertira, com tanta queda do burrinho! Então, sentei-me do lado de fora, a ver o carrossel girar e a tentar decidir o quanto queria voltar lá para dentro e como o iria fazer. E o tempo foi passando e o carrossel continuava a girar, indiferente à minha ausência. Ninguém parava o carrossel para eu voltar a entrar, pelo que percebi que teria que ganhar coragem e saltar lá para dentro. Ainda estou à espera dela. 

31/10/2016

A casa em ruínas

Era uma casa bonita, com tudo para ser o lar perfeito. Mas pouco depois da construção começaram a aparecer os problemas. Primeiro, umas rachadelas na parede, encobertas com uma pintura. Que depois voltaram a abrir e alargar até fazer buracos.
Então começaram-se a disfarçar os buracos. Primeiro puseram-se uns móveis à frente a encobrir. Depois, taparam-se alguns toscamente com cimento mal feito, que volta e meia se esboroava também e sobre o qual era aplicado mais um pedaço de cimento, só para mascarar.
Há até, numa parte mais escondida do fundo da casa, um buraco que atravessa a parede e que é tapado apenas com pedaços de cartão, o que faz com que a casa esteja sempre fria.
Os buracos são já tantos que a casa ameaça até ruir. Se passa um camião na rua, ou até apenas uma carrinha mais pesada, toda ela estremece.
Mas a fachada… A fachada é maravilhosa, bem pintada de azul celeste, com a porta e as janelas sempre brilhantes e com um ar acolhedor. Quem a vê, pensa que é uma casa maravilhosa e que quem lá mora tem muita sorte, mas nem sonha que os moradores às vezes nem dormem de noite, com medo que a casa se desmorone.

03/10/2016

A esperança

“Toda a infelicidade dos homens provém da esperança.” *

Esperamos por amor e ele desilude-nos. Esperamos por amizade e somos atraiçoados. Esperamos por sabedoria e somos confrontados com a imensidão da nossa ignorância. Esperamos por paz e harmonia e só vemos guerra, conflitos e discussões. Esperamos por beleza e só vemos a sua ausência. Esperamos por sucesso e bens materiais, para vermos que mesmo alcança-los não traz felicidade. Esperamos pelo sol e só vemos as nuvens. Esperamos que os nossos entes queridos durem para sempre e eles vão-se tantas vezes antes de nós. Esperamos alcançar a felicidade e, por qualquer motivo que não conseguimos perceber, ela está sempre um passinho à frente de nós.
A esperança cria em nós determinadas expetativas que frequentemente não são cumpridas, ou nos chegam de forma diferente daquela que esperávamos e temos dificuldade em compreender que não recebemos aquilo que esperávamos, mas aquilo que na realidade precisávamos, sem que sequer o soubéssemos. Essas expetativas goradas são efetivamente a fonte de infelicidade dos homens, porque falham em trazer a felicidade que esperávamos e deixam-nos com a sensação de falhar, de não atingir algo que achamos que nos devia ser possível atingir, de perder aquilo que mais queríamos guardar.
E, porém, trazendo-nos tanta infelicidade, o que seria dos homens sem esperança? Sem o sonho que comanda a vida? Sem aspirarmos àquela paixão, àquele trabalho, àquelas férias paradisíacas? E ainda que a realidade se venha a revelar o inverso de tudo o que esperámos e nos traga a infelicidade, o esperar por algo doce, algo que nos fará sentir bem connosco próprios, é por si só uma forma de felicidade. E é preferível ser feliz por uns tempos com uma ilusão e depois ficar infeliz, do que não ter esperança em nada e sê-lo perpetuamente.

* Albert Camus 

26/09/2016

O fundo do poço

Sabes que bateste no fundo do poço quando olhas à tua volta e só vês escuridão, não vislumbras nenhuma solução para os teus problemas, nenhum caminho a seguir para encontrares o teu futuro.
O fundo do poço é frio, escuro e solitário, no entanto por vezes pode ser “confortável” e desejares ficar lá. Uso as aspas porque não pode haver real conforto num sítio assim, mas é o conforto de pensar que, se já estás no fundo, nada mais te poderá afetar. O problema é que, além de essa não ser uma forma de vida, na realidade ainda podem acontecer muitas coisas desagradáveis, como deitarem lixo para o poço ou resolverem tapa-lo, soterrando-te nele para sempre.
Por isso, há que tentar sair do poço. O primeiro passo é recuperar da queda. Respirar, avaliar as consequências da queda e quais as possibilidades de saída.
Alguns poços, ainda que à primeira vista sejam aterradores e pareçam não ter fundo, são na realidade pouco profundos ou, mesmo sendo-o, têm uma escada de segurança que podes, com cuidado e tendo em conta eventuais ferimentos, subir por ti próprio, ao teu ritmo, mas com segurança e relativamente pouco esforço.
Outros têm uma corda que terás que trepar ou saliências na parede por onde escalar. É mais custoso, mais perigoso, mais sujeito a retrocessos, mas eventualmente é possível sair por meios próprios.
Mas se o poço não tem meios que facilitem a saída ou se estás demasiado ferido ou sem forças para sair do poço, ainda que te pareça que o devias fazer sozinho, não deves hesitar em gritar por socorro. Chama, grita até ficares rouco, mas não te deixes ficar no poço por achares que ninguém te virá socorrer. Sejam os teus amigos, que até já andavam desesperados à tua procura, sejam profissionais, se chamares irão aparecer e ajudar-te a sair do poço e a tratar das feridas.
Não te deixes ficar no fundo do poço por medo que não te ouçam ou que te achem pateta por teres caído. Luta e pede ajuda sempre que lutar sozinho não for suficiente!

19/09/2016

Feitiço

No meu mundo, fazes o sol brilhar e as estrelas cintilar. Fazes o sereno céu noturno e o luar prateado. Dás o azul ao céu e o verde às árvores, fazes os passarinhos cantar e os arbustos florescer.
Trazes contigo o calor suave da Primavera, o aroma das rosas e da brisa do mar. A doçura do chocolate e o sabor dos melhores petiscos. As baladas de amor e o rock da pesada. O nascer do sol na montanha e o pôr do sol sobre o rio. O riso, as conversas animadas, o canto e as lágrimas de alegria.
Trazes nos olhos a minha felicidade e nos lábios o meu sorriso.
Mas, sem ti, o meu mundo é triste e sombrio. Sem ti está sempre tempo encoberto e frio e chuva. O sol e a lua escondem-se atrás das nuvens e recusam-se a alumiar-me.
Sem ti não vejo o caminho, vejo uma floresta cerrada onde sei que ficarei perdida para todo o sempre, tentando em vão encontrar a saída. Onde só há animais ferozes que me aterrorizam e dos quais tenho que fugir ou esconder-me. Onde não há comida, só fruta amarga e muitas vezes venenosa.
Como foi que, sem fazeres nada, viraste assim o mundo do avesso? Serás um mago e estarei sob o teu feitiço? Ou serei eu a feiticeira que acidentalmente se amaldiçoou a si própria?

12/09/2016

Teoria dos afetos

Os afetos são algo de complexo. Não só como os sentimos, por quem os sentimos, mas também como os outros sentem o nosso afeto.
Às vezes, os afetos mais profundos estão escondidos sob carapaças de aparente indiferença ou frieza, seja por questões de temperamento, seja por medo de nos expormos ao revelar esse afeto.
E, por estar assim disfarçado, parece às vezes nem existir, revelando-se, apenas aos olhares mais atentos, nas atitudes de quem o sente.
Quantas vezes só sentimos o afeto de alguém quando este se revela num momento de necessidade?
E quantas vezes só o demonstramos também quando vemos que aquela pessoa precisa de nós, do nosso apoio, do nosso carinho e esquecemos então o medo e a vergonha e estamos lá, para o que der e vier!
Precisamos também das palavras para sentirmos o afeto, mas não são só as palavras que demonstram o afeto, mas também as atitudes. O apoio incondicional, a presença quando mais faz falta, o conselho precioso no momento necessário.
Não, os afetos não são algo simples, porque os sentimentos nunca o são.

05/09/2016

O Pintor

Quantas tonalidades de azul tem o céu? Ou um pôr do sol junto ao mar?
Cores que diríamos irreproduzíveis, se não as víssemos sair da paleta de Artur para os seus magníficos quadros.
Olhando para ele, ninguém diria que havia ali um excelente artista. De segunda a sexta, das nove às seis, Artur anotava encomendas, emitia faturas, registava documentos, era um pacífico e competente empregado de escritório.
Nas horas livres, transformava-se no pintor, que colocava no papel misturas de cores que reproduziam de forma quase fotográfica as paisagens que via.
Numas férias, Artur ia diariamente pintar para a Foz. O mar era o seu tema favorito. Reparou, porém, numa presença constante na esplanada próxima, uma mulher, morena, de ar sereno, que sempre exibia um sorriso gentil aos empregados de café. Já não era nenhuma menininha, mas assumia-o de forma natural no seu porte e forma de vestir.
Impulsivamente, Artur começou um novo quadro, reproduzindo lentamente, ao longo de vários dias, aquela figura tão bela.
Um dia, sentiu que alguém parou atrás de si a observar. Era comum, mas se a pessoa não metesse conversa, Artur fingia não notar.
Logo de seguida, apercebeu-se que uma amiga se aproximava da sua musa, falando excitadamente. Viu a mulher, sempre tão serena, corar profundamente e olhar para ele com ar espantado.
Apercebeu-se nesse momento de que o que fizera podia ser considerado abusivo, pelo que retirou a folha do seu caderno e dirigiu-se à esplanada. Estendeu-a à modelo inesperada, dizendo:
- Peço desculpa, não a devia ter pintado sem lhe pedir autorização. Foi um abuso da minha parte.
A mulher olhou para a pintura e devolveu-lha:
- Não assinou a sua obra.
Artur fê-lo rapidamente, voltando a entrega-la.
- Muito prazer, Artur – disse ela, estendendo-lhe a mão. – O meu nome é Clara e esta é a minha amiga Joana. Já tinha visto as suas pinturas do mar e do pôr do sol, fiquei sempre impressionada. Por favor, sente-se e tome qualquer coisa connosco.
Corando ligeiramente, Artur concordou e sentou-se.

29/08/2016

Carta ao Avô

Querido Avô:
Tenho que confessar que me sinto um bocadinho intimidado por ti, por isso optei por escrever esta carta.
Tenho ouvido algumas histórias que o papá vai contando sobre ti, mas gostava mesmo muito que mas contasses tu, histórias da tua infância e juventude, que o papá só conhece de tas ouvir contar, histórias da infância do papá e dos tios, que eles decerto não recordam tão perfeitamente como tu.
Gostava também que falasses mais comigo, não só para me contares essas histórias, mas também para me ensinares coisas que sabes, porque eu acho que tu sabes muitas coisas boas e importantes, que eu já percebi que sabes, mas que não me dizes.
És um Avô muito sério, não estás sempre a brincar como o Avô Manel, que diz muitas tolices e se ri muito. Tu não, estás sempre com ar de quem tem todos os problemas do mundo para resolver (o papá diz que tens uma profissão muto importante e que do teu trabalho depende a vida de muita gente, mas precisava que que explicasses exatamente o que fazes. Sei que és juiz e por isso podes mandar pessoas para a prisão, mas não sei bem como isso funciona).
Sei que achas que sou muito cabeça no ar, que só gosto da bola e de desenhar e que não me esforço na escola (sim, ouvi-te dizer isso à mamã, que ficou muito zangada, apesar de muitas vezes me dizer o mesmo). Mas prometo que, se tirares uns bocadinhos do teu tempo tão ocupado para me falares de ti, da tua vida, do que querias ser quando crescesses (não era juiz, pois não?) estarei sossegado e muito, muito atento.
Porque gosto muito de ti, Avô, mas acho que não te conheço e gostava de conhecer.
O teu neto
João

22/08/2016

Carta a um vizinho

Estimado vizinho:
Espero que não leve a mal esta carta que tomo a liberdade de lhe escrever. Não nos conhecemos pessoalmente e também não ficará a saber quem sou (desculpe a cobardia), mas tinha que escrevê-la e acredite que tem as melhores intenções.
Cruzando-nos diariamente na vizinhança, foi impossível não me aperceber da sua reforma e de como passou a sair sempre com a esposa, para a mercearia, o café ou o talho. Notava-se bem a cumplicidade de longos anos de casamento.
Do mesmo modo, foi percetível a doença dela, a forma como a sua saúde se deteriorou com gravidade e como passou a ser o senhor a tratar de todos os pormenores da vida da casa. Via-se como, apesar das suas próprias limitações físicas, a acompanhava e ajudava sempre. E, claro, soube-se do triste, mas inevitável, desfecho, que o deixou com o ar cansado, abatido e triste, que mantém ainda hoje, cerca de dois anos volvidos.
Já pude perceber que é uma pessoa algo solitária, que não terá muitos amigos e, por isso, pouco sai de casa. Já percebi que tem filhos, no entanto creio que estes não se apercebem do seu isolamento e tristeza, porque junto deles vejo-o sempre com uma cara alegre que me parece mais fachada do que real felicidade.
É por isto que escrevo. Queria que soubesse que na zona há vários centros de dia, grupos recreativos e uma universidade sénior (a listagem está no verso desta folha, com moradas e contactos), onde poderá encontrar pessoas com quem conversar, falar dos eventos do dia a dia, da política e do futebol, recuperar alguma alegria de viver.
 E, se para nada mais servir esta carta, que sirva para saber que a sua vida toca a de outras pessoas e, por isso, não está sozinho no mundo.

17/08/2016

O tempo

O tempo é uma coisa curiosa. Tem uma medida exata – décadas, anos, meses, dias, horas, minutos – e, ao mesmo tempo, é inquantificável.
É inquantificável porque depende da perceção que temos dele. Sim, podemos dizer que uma hora é sempre uma hora, um dia é sempre um dia, mas é totalmente diferente a sensação de quanto dura uma hora ou um dia.
Uma hora parece um minuto quando lemos um bom livro, mas se estamos à espera de uma consulta que nos dirá se estamos gravemente doentes ou não, parece um ano. Um dia de férias é muito mais curto do que um dia de trabalho.
Enquanto somos crianças, as horas que passamos a brincar parecem minutos e nem percebemos porque está a mãe tão zangada – afinal de contas ainda agora saímos de casa! E ao mesmo tempo, a hora da aula parece não ter fim, o Natal nunca mais chega e falta uma eternidade para chegarmos aos tão desejados dezoito anos.
Depois começamos a trabalhar, a viver mais em rotinas, e enquanto pensamos que nunca mais chegam as férias, logo de seguida percebemos que o fim do ano está a chegar e que não sabemos como é que ainda ontem era janeiro e agora já é dezembro.
As décadas também nos atraiçoam. Até aos vinte os anos passam com calma. Dos vinte aos trinta já aceleram um pouco, e logo a seguir damos conta que estamos a fazer os quarenta, e rapidamente chegamos aos cinquenta e por aí adiante, e olhamos para trás e pensamos: “mas parece que foi há dias que fiz quarenta anos!”.
É esta relatividade que dá ao tempo o seu fascínio e torna algo que é medido de forma exata em algo que varia tanto. Porque a tua hora pode ser diferente da minha.

08/08/2016

Vida

Existo há vinte e sete anos, mas não sei se já comecei a viver.
Tantas e tantas vezes sinto que apenas existo, apenas ando neste mundo à procura do meu lugar, do meu espaço e das pessoas com quem começarei efetivamente a viver.
Por vezes, tenho lampejos de vida: quando me entusiasmo por um projeto, quando faço uma bela viagem ou quando me apaixono perdida e inevitavelmente pela pessoa errada, o que leva a que por uns tempos me sinta vivo, mas acabe por voltar à mera existência.
Tenho constantemente a sensação de me faltar uma centelha qualquer que é o que leva ao sentimento de estar vivo, algo que tenho que encontrar dentro de mim, sob pena de passar ao lado da vida e não por ela.
Sinto que tenho que encontrar essa centelha rapidamente, para não olhar para trás mais tarde e notar que a maior parte da minha vida não foi Vida.
E, no entanto, questiono-me também se não terei demasiadas ilusões sobre o que é viver. Se não estou de facto a viver, apesar de não ter encontrado ainda o grande amor da minha vida, de estar num emprego que não é aquele que sonhava, de ainda não ter conseguido fazer todas as viagens que quero.
Mas já amei e fui amado, já sofri por amor e por perdas, tenho amigos e família com quem me sinto feliz, com quem me divirto e passo bons momentos, tenho um emprego que me dá um modo de vida e oportunidade de crescer profissionalmente e ganhar experiência para outros voos, que talvez exijam mais coragem de mim, mas que estão ao meu alcance, ainda que me assustem.
Estou neste mundo há vinte e sete anos, talvez não tenha vivido a totalidade desses anos, mas já vivi muito.

01/08/2016

Miscelânea

Desinspiração
Por vários motivos, tenho andado particularmente desinspirada. O cansaço, o calor, alguns problemas roubam-me a inspiração, ao ponto de a participação no 31° Campeonato Nacional de Escrita Criativa ter sido algo custosa. No entanto, inscrevi-me logo no 32°, com esperança de ter mais ânimo.

Experiências novas
Ando numa fase em que quero experimentar coisas novas, diferentes. A semana passada fui a um evento sobre a época vitoriana na livraria Flaneur, onde estivemos um grupo pequenino mas agradável a aprender sobre a florigrafia e a fazer raminhos. Umas horas deliciosas, em que deu para abstrair do dia a dia.
Esta semana fui a um evento de "Mindfulness para todos", na casa de chá Casa Branca, no Porto. Mais uma vez um grupinho pequeno, mas agradável, onde aprendemos um pouquinho sobre este assunto tão em voga, mas de uma forma simples, didática, relaxante. Algo que gostaria de explorar mais um pouco.

Amizade
Os amigos são para as boas e más ocasiões. Mas a felicidade dos amigos é algo que nos traz uma alegria inexplicável, quase como se fosse connosco próprios.
Não compreendo as pessoas que invejam o bem dos outros (de forma maldosa, que às vezes um pouquinho de inveja é natural - mas no sentido de gostarmos do mesmo para nós e nunca desejar que o outro perca o que tem). Hoje tive uma dessas alegrias - acordei a achar que ia ser um dia feliz, só não sabia que seria por interposta pessoa. Mas foi feliz na mesma.

Pronto, acabo aqui o devaneio, para a semana volta a ficção.

25/07/2016

Fins

Não acredito no fim. Excluindo o fim da vida (e mesmo esse, sabemos lá se é mesmo um fim), recuso-me a ver algo que acaba como sendo o fim.
Sim, há finais, mas não nos podemos concentrar neles. Temos que procurar sempre o que é que aquele final significa e o que é que o pode suceder.
O fim duma fase da vida implica sempre a entrada numa nova. Nessa é que devemos concentrar as nossas energias, a nossa força, procurar que novos rumos a vida nos está a mostrar. Se ficarmos a olhar para o fim, podemos perder a estrada que se está a abrir à nossa frente, que nos poderá levar muito mais longe do que aquela que se fechou atrás de nós.
Por isso, um fim deve ser respeitado, acarinhado até deixar de doer (quando dói), celebrado quando é o término de algo mau, mas mantendo sempre presente a ideia que o nosso destino está depois dele e que se houve um fim, houve decerto um motivo para tal. Mesmo quando nos parece o fim, mesmo quando tudo fica destroçado, o nosso coração em pedaços, a nossa vida em frangalhos, mesmo quando já nada parece fazer sentido porque algo acabou, deixou de existir, há que rebuscar as forças, fazer das tripas coração, avançar em frente e reconstruir o que precisa de nova edificação, reparar as fendas, tapar os buracos e repor a ordem possível.
O único fim incontornável, para além da morte, é o fim da esperança. Porque quando deixamos morrer a esperança, matamo-nos também um pouco. E quem não tem esperança não tem forças para a luta, para a recuperação, para o regresso ao lado bom da vida.
Desde que não nos deixemos afundar, um fim não é um fim, é um ponto de viragem!

18/07/2016

O lado egoísta do amor

Quando tu sofres, eu sofro duas vezes.
Sofro por te ver em dor, em desespero, em angústia e sinto o teu sofrimento como se fosse meu. Faz-me doer a alma, corta-me o coração, ver-te infeliz, revoltado, em guerra com o mundo. E tento, na medida do que me é concedido, aliviar a tua dor.
E é daí que surge a minha segunda dor, uma dor mais egoísta até. Porque queria ser eu quem te consola, a quem confidencias as tuas mágoas, as tuas preocupações, aquilo que mais te afeta. Queria que fosse a minha mão que apertas quando precisas de força, que fossem os meus braços a envolver-te quando precisas de conforto, que fossem os meus beijos a secar as lágrimas que tentas reprimir porque queres ser forte.
No entanto, não tenho o direito sequer de te forçar a confidenciar esses sentimentos, tenho que esperar que mos confesses, mesmo quando noto que não estás bem, que estás alterado, não posso passar do “Está tudo bem?” trivial, quando a única coisa que queria era abraçar-te e prometer-te que tudo vai ficar bem, seja lá o que for, e que por ti moveria montanhas e atravessaria continentes, se fosse o que precisasses.
Por isso dói duas vezes, dói porque te dói e dói porque não posso ser eu a tua âncora, o teu rochedo, o teu mar calmo, a tua força nos momentos difíceis. Ainda que tenhas quem seja isso tudo para ti e que por isso não sintas a minha falta nesses momentos, sinto eu a falta de te poder amparar nessas alturas e de poder saber ao certo se estás bem ou simplesmente a pôr a máscara do “tudo ok” que todos usamos com quem não temos aquela relação especial. 
Será errado, este egoísmo do amor?

13/07/2016

Interferências da vida

Diversas situações (nomeadamente falta de inspiração) impediram-me de escrever um texto para a 8ª jornada do CNEC e não tive inspiração para escrever sobre outra coisa qualquer. Chamemos-lhe "writer's block".
Ao meu micro (mas fiel) clube de fãs, o meu pedido de desculpas. Para a semana há mais.

27/06/2016

A porta enferrujada

Era uma porta enferrujada. E ela entrou. A medo. Um maravilhoso jardim surgiu diante dos seus olhos, com canteiros e arbustos e um aroma a flores que a fez pensar ter entrado no País das Maravilhas, ao ponto de se pôr a olhar em volta procurando o Coelho Branco.
Em vez dele viu, de forma igualmente inesperada, a sua avó. Não como a vira pela última vez, uma velhinha ligada a tubos numa cama de hospital, mas a senhora de idade que acolhia a adolescente rebelde com bolos caseiros e palavras apaziguadoras.
Do outro lado do jardim viu um rapazinho a acenar-lhe e a chamá-la para brincar. Percebeu que era o primo João, com quem brincara em criança. Tinham perdido contacto quando este se mudara com a família mas sabia que tinha falecido num acidente de mota há uns anos.
Ao fundo do jardim, numa mesa sob um guarda sol, o avô, com o aspeto do senhor que lhe dava ralhetes, mas também colo, mimos e rebuçados às escondidas, e que partira quando ela era ainda criança. Aos seus pés, abanando entusiasticamente a cauda, o Bobi, o cão do avô, que não lhe sobrevivera muito tempo, apesar de gostar muito dela, a sua dedicação era ao dono.
Dirigiu-se à avó - Vim para ficar, avó Maria?
- Não, minha querida, ainda tens muito que viver.
Sentiu como que um puxão e começou a ver o jardim a ficar enevoado.
- Avó, eu queria ficar!
- Mas ainda não é altura. Vieste só fazer uma visita e deixar-nos lembrar-te que gostamos muito de ti e que desejamos que aproveites a tua vida e sejas feliz!
Sentiu um novo puxão e acordou numa cama de hospital.

E nunca ninguém percebeu porque é que as suas primeiras palavras foram “quem diria que a porta do Céu era velha e enferrujada?”.

A lei do abraço

Hoje fomos multados. E eu, enquanto o policia passava a multa, mal conseguia conter o riso. Quer pelo motivo pelo qual te abracei na via pública, quer pelo ridículo de isso ser proibido.
Porque diabo te lembraste tu de dizeres que me amas no meio da rua? Que outra reação podia eu ter senão abraçar-te, e apertar-te bem junto ao peito para ter a certeza que eras tu mesmo e não um sonho? Bem podias ter reservado essas palavras para um local mais íntimo, onde pudéssemos cometer ilegalidades sem testemunhas. Olha que com o dinheiro da multa íamos um belo fim de semana para fora.
E tu sabes bem que eu sou uma fora da lei, adoro abraçar. Não consigo conceber como é que alguém se lembrou de proibir tal coisa! Um ato que só faz bem, uma transmissão de carinho, de apoio, de amor! Como pode tal coisa ser ilegal?
Não, andarei sempre na ilegalidade. Discreta, que o dinheiro não dá para as multas, e qualquer dia acumulo e vou parar à cadeia. E como é que me vais abraçar na cadeia, com os guardas todos a ver?
Não, só nos podemos abraçar em privado. E como eu gosto de te abraçar, de rodear o teu pescoço com os meus braços e encostar o corpo todo ao teu! Que melhor forma tenho de te mostrar que também te amo, ainda que nunca o tenha dito por palavras?

Não, temos que lançar petições e fazer manifestações, que a vida sem abraços não é vida! Onde é que já se viu, uma mãe não poder abraçar os filhos, os namorados não se poderem abraçar? Vamos lutar pelo direito ao abraço, porque quero abraçar-te sempre que me apetecer, esteja onde estiver!


Nota: Este texto era suposto ter feito parte do 31º CNEC, mas devido a um ataque de trenguice (crónica, provavelmente) parece que não o enviei, pelo que não foi avaliado. Dado que foi inspirado pelo concurso, mantive a etiqueta que o classifica como tal.

20/06/2016

Migalhas

“And I wish you all the love in the world,
But most of all, I wish it from myself.”
Songbird, by Fleetwood Mac *

Será isto egoísmo? Sim, tem inequivocamente uma componente egoísta, porque apesar de te desejar toda a felicidade (e amor) quero que tenham origem em mim.
Por isso, mesmo sabendo que és feliz e amado, sou eu profundamente infeliz por não poder ser a fonte da tua felicidade. Uma infelicidade que por vezes me tolhe de tal forma que me impede de aproveitar as migalhas que recebo da tua amizade, as migalhas que são o meu único sustento e que são normalmente doces e suficientes para sobreviver, mas ocasionalmente são amargas e não as consigo tragar, deixando-me vazia, insatisfeita, à procura de algo mais que me alimente e tantas vezes sem o encontrar.
Mesmo as migalhas que me dás, a maioria das vezes tenho que ser eu a mendigá-las, qual pedinte de rua a pedir para uma sopa. E nem percebes o que me estás a dar. Não tens noção do quanto vivo para essas migalhinhas, mesmo quando me partem o coração e me deixam desfeita em pedaços, pedaços que cada dia se estilhaçam mais, ao ponto de não saber se ainda continuo a conseguir reconstruir-me toda.
Acho que não. Sinto que a cada dia há mais um bocadinho de mim que se perde, algures pelo caminho, no espaço entre mim e ti, nesse vazio que tu não vês que existe.
Porque não me afasto, perguntam-me? Porque apesar de tudo são as migalhas que me mantêm viva, porque prefiro sofrer e sentir, do que não sentir e andar por aí sem ansiar por nada. Porque prefiro ter algumas migalhinhas amargas que me fazem chorar, sofrer e passar fome, compensadas com as migalhas doces, do que não ter nada.

Um dia encontrarei quem me dê mais que migalhas. Provavelmente não serás tu. Mas até lá, és o meu sustento.



*  https://www.youtube.com/watch?v=51vjhSlUCcE

14/06/2016

Início?

Amanhecia, quando tocou o despertador, que desliguei rapidamente para não te incomodar. Adormecido ao meu lado, eras um sonho tornado realidade, tinha dificuldade até em crer que estavas mesmo ali. Acordada, fiquei a contemplar-te, as longas pestanas no teu rosto moreno, a curvatura da tua boca, os cabelos revoltos no travesseiro, a mão forte sobre o lençol branco. A recordar a noite anterior, lembrando-me de tudo o que dissemos, de tudo o que fizemos, de tudo o que senti por finalmente te ter comigo.
Ansiei tanto por esses momentos, há muito que esperava que reparasses em mim, nos meus sentimentos e que os retribuísses, e que juntos pudéssemos ter uma noite como esta, em que fossemos mais do que dois seres isolados, fossemos seres unidos por uma paixão
Abriste os olhos devagar, como se sentisses o peso do meu olhar. Azuis, brilhantes como safiras. Acordado por fim, sorriste-me de forma que me fez sentir a mulher mais bela do mundo e inclinaste-te sobre mim para me beijar.
Ambos nos levantamos, quase sem falar, como se todos os passos nos fossem habituais, eu dirigi-me à cozinha, para preparar o pequeno almoço, tu à casa de banho, para um duche.
Amor eterno, foi a tisana que escolheste, com uma piscadela de olho marota, quando te juntaste a mim na cozinha, descalço, cabelos molhados, apenas de jeans. Apenas olhar para ti lembrava-me o que passáramos juntos e trazia-me todas essas emoções à flor da pele.
Acabaste de te vestir e vieste despedir-te de mim ao quarto, onde também me arranjava para ir para o trabalho. Abraçaste-me e beijaste-me. Até logo, disseste.

Atónita, fiquei sem saber exatamente o que significavam as tuas palavras. Amanhã será igual a hoje? Antecipas um futuro em conjunto? Assim, de repente, sem sequer falarmos sobre isso?

06/06/2016

Sonho de Amor

“Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor.” *

Leu ele, em tom romântico, enquanto partilhava igualmente a citação na sua página do Facebook.
- Então tu não me amas autenticamente – retorquiu ela, ocupada a arrumar a cozinha.
- O que queres dizer com isso?
- Revês-te mesmo nessa citação?
- Mas tens razão de queixa? – questionou ele, em tom cético e quase magoado.
- Não foi isso que eu disse. Revês-te na citação ou não?
- Mas achas que não?
- És orgulhoso que te fartas, nunca admites que erras ou te enganas. Demoras mais tempo a arranjares-te do que eu, adoras exibir bons carros e bons telemóveis. Ainda hoje reclamas que me esqueci do nosso aniversário há três anos. Achas mesmo que te enquadras nessa citação? – respondeu ela, enquanto enxugava as mãos, encostada ao lava louça.
- Pensas assim tão mal de mim? – interrogou ele, com ar espantado.
- Não – retorquiu ela, com um sorriso, aproximando-se dele e colocando-lhe uma mão no ombro, com carinho. – Acho que és humano e tens defeitos, como qualquer pessoa. Por coincidência, os teus defeitos são precisamente os descritos nessa frase. E não passaram por me amares. Daí a minha conclusão.
Ele pegou-lhe na mão que estava sobre o seu ombro e beijou-a. Depois, pondo-se de pé, rodeou-lhe a cintura com os braços, num gesto terno.
- Mas isso é porque entre nós não há um autêntico sonho de amor.
Ela arregalou os olhos, surpreendida.
- Há um autêntico amor, não um mero sonho. Sonho é algo que vive de ilusão e fantasia. O nosso amor é real, sincero. Já não andamos a disfarçar quem somos para parecermos melhores, aceitamo-nos tal como somos. E isso é melhor ainda que qualquer sonho de amor, não achas?
Ela pôs-lhe os braços à volta do pescoço e respondeu com um beijo real e sincero.


*Miguel Torga, in “Diário (1948)”

30/05/2016

A Casa

A casa é sempre o centro e o sentido do mundo. A partir daí, da casa, percebe-se tudo. Tudo. O mundo todo.” *

O problema é encontrar A casa. Porque passamos toda a vida a procura dela, à procura do ponto onde tudo faz sentido, onde percebemos tudo. E vamos encontrando casas onde algumas coisas fazem sentido. Outras que são centros de algo, mas não de tudo. Outras ainda onde se vão percebendo coisas.
Mas essa, onde tudo nos é percetível, essa é a eterna miragem, aquela que perseguimos dia após dia.
Vivemos na ânsia de querer perceber tudo, quando muitas vezes não conseguimos sequer perceber-nos a nós próprios. O maior mistério da nossa vida somos nós próprios, andamos a tentar perceber o mundo sem percebermos quem somos, porque somos assim e o que nos leva a agir de determinada maneira, às vezes sempre da mesma forma apesar de querermos mudar tanta coisa e caímos sempre nos mesmos erros, nos mesmos atos, no mesmo modo de pensar.
Sim, a casa é o sentido do mundo, mas A casa não é mais que o nosso próprio coração ou alma, como quisermos interpretar. E é preciso entrarmos bem fundo dentro da nossa casa, com coragem, determinação e lanterna de mineiro para efetivamente conseguirmos ver o sentido do nosso mundo e percebe-lo todo. Porque é um exercício tão duro, tão intrinsecamente doloroso, o escavar nas nossas memórias e sentimentos, para percebermos às vezes apenas um bocadinho do nosso centro.
Mas com esforço e dedicação, sim, conseguimos perceber o sentido do nosso mundo e somos o centro dele, não de uma forma egoísta, mas porque é à nossa volta que o mundo existe e não podemos entender o mundo sem nos entendermos primeiro.


* Al Berto, in “Entrevista à revista Ler (1989)”

23/05/2016

Conselhos do Avô

Meu querido Miguel
Quando leres esta carta, já há muito não estarei neste mundo. Aliás, como decerto já ouviste centenas de vezes, foi um milagre ainda cá estar para te receber, o meu primeiro neto.
No momento em que lês esta carta, és já um homem. Vinte anos! Interrogo-me o que terás feito neste tempo. Achei que era a altura certa para te transmitir os meus parcos conhecimentos e também para me conheceres melhor.
A vida afastou-me da tua avó e esse afastamento teve, como seria inevitável, consequências na relação com as minhas filhas. Tentei ser um pai presente, mas sei que muitas vezes falhei nesse meu propósito e que as desapontei. Por isso, o meu primeiro conselho é muito especifico: se tiveres filhos, lembra-te que eles precisam sempre de ti e de saber que os amas.
Os restantes conselhos são mais genéricos e podes lê-los em imensos livros e até nas redes sociais (ainda há Facebook ao fim de vinte anos?)
Lê muito – a ler aprende-se não só factos mas também que o mundo não é só aquilo que conhecemos.
Ouve os outros - podes sempre aprender algo ou ajudar alguém que precisava desabafar.
Ri-te o mais que possas, principalmente de ti mesmo. Não te leves demasiado a sério e procura o humor em todos os momentos da vida.
Chora quando tiveres que chorar, não tenhas vergonha de o fazer. Só não chora quem não sente.
Sê a melhor versão de ti mesmo. Não te amedrontes face aos desafios, enfrenta-os com consciência das tuas forças e dos teus limites. E, acima de tudo, sê feliz!
Era assim que eu queria ter vivido a minha vida. Falhei na maioria destas coisas, espero que estes conselhos te possam ajudar a não cometer os mesmos erros que eu.
O teu avô


Miguel

16/05/2016

Desajuste

Vista do exterior, Catarina era uma mulher perfeita e bem-sucedida.
Muito bonita, com os cabelos negros sempre impecavelmente esticados, bem maquilhada, com uma figura invejável envolta em roupa de boa qualidade que lhe assentava como uma luva. Um emprego de sucesso, com um cargo já de alguma importância para a sua idade, ainda arranjava tempo para a rotina do ginásio que a mantinha em forma.
Casamento de sonho, com um homem igualmente bonito e bem-sucedido, com uma casa sempre em ordem ao dispor das vistas, férias em locais elegantes de onde regressava bronzeada e ainda mais bela.
Mas Catarina não se sentia aquela pessoa que todos viam. Quando de manhã esticava o cabelo e aplicava a maquilhagem, era porque se sentia feia e achava que os cabelos desalinhados lhe ficavam mal e que sem a maquilhagem toda a gente notaria as imperfeições da pele, os lábios mais finos do que gostaria e a quase impercetível cicatriz no nariz que ela pensava ver-se a léguas.
A roupa impecável usava-a para dar o ar de executiva que necessitava para se sentir mais apta às responsabilidades e exigências do seu trabalho, sentindo que ninguém a levaria a sério se usasse um estilo mais casual.
O bom cargo conquistara-o com muitas horas de trabalho árduo e ainda assim sentia-se constantemente uma fraude, sempre à espera que alguém lhe apontasse falhas e erros, pelo que se esforçava cada vez mais. Ninguém sonhava que, na véspera de cada reunião, a serena e sempre competente Catarina tinha que recorrer a comprimidos para conseguir dormir.
Tal como ninguém sonhava que o casamento perfeito pouco mais era que um juntar de interesses, que o marido quase não lhe dava atenção ao chegar a casa, concentrando-se mais no computador e no futebol, mas esperava que ela estivesse sempre disponível e para os jantares com os clientes estrangeiros. E que constantemente era bombardeada pela sogra (e pela própria mãe) com a eterna pergunta sobre quando é que vinham os netinhos, quando Catarina não se sentia sequer capaz de tomar conta de si própria na maioria dos dias.

Quem a via de fora, pensava: Ali vai uma linda mulher, feliz e bem-sucedida. Mas o patamar de exigência consigo própria de Catarina era muito elevado e sentia-se feia, infeliz e um fracasso em muitas partes da sua vida. 

09/05/2016

A vida em Technicolor

Vivo numa cidade bela, com um rio maravilhoso em que o céu azul se reflete e com escarpas de pedra cinzenta, agora na primavera pontilhadas de plantas verdes e flores coloridas. Mas quando se vive no centro, por entre casas degradadas e na rotina do “casa-trabalho/trabalho-casa”, é fácil esquecê-lo. Foi preciso um desafio para, num dia cansativo e aborrecido, reparar que ao cimo da rua ingreme que constitui o meu percurso diário a caminho de casa, há uma casa antiga em azulejo cor de laranja. Quem me conhece, sabe que é cor que abomino, mas naquele dia, naquele momento, aquela casa parecia-me um destino a alcançar, brilhante e colorida, animando o cinzento do dia e, estranhamente, o cinzento que tinha nesse dia cá dentro.
Porque, nesse dia, a minha cor interior condizia com o tempo. Mas neste período notei também que, embora um céu azul anime e um dia cinzento deprima, são apenas fatores colaterais na disposição geral. Ainda que uma manhã solarenga predisponha ao bom humor, e que um dia chuvoso faça apetecer voltar logo para a cama, a companhia certa faz também muita diferença.
Observei o azul profundo do céu limpo, quando já anoiteceu e já se vêm estrelas, um azul sereno que inspira sonhos e fantasias e que, pela sua beleza, lembra um manto de príncipe, transmitindo paz e confiança no amanhecer do dia seguinte.
Apreciei umas pequenas árvores, quase escondidas numa pequena praceta, ainda sem folhas, mas cheias de flores rosa pálido, tão discretas que quase passavam despercebidas, e também as árvores bem verdes de um jardim perto de casa, que me fez pensar porque não o aproveito mais vezes, na correria do dia a dia, já que tenho ali um ponto onde parar um pouco com serenidade. Mas serenidade obtenho também quando acaricio o pelo preto sedoso do meu gato mais mimalho, aquele que de tanta turrinha me faz entornar o chá por cima de mim e que tenta roer a caneta com que escrevo.
Concentrei-me também na beleza das diferentes cores de olhos. Os olhos das pessoas fascinam-me, aquelas janelinhas para a alma, diz o povo, mas para mim normalmente inescrutáveis. Todos os olhos são belos, quando nos olham com franqueza e amizade. Sejam olhos castanhos quase negros, cor de avelã, azuis brilhantes ou verdes claros, ou aqueles em que os laivos de verde numa base castanha nos deixam sem saber com que cor os classificar. Mas, seja qual for a cor, quando podemos olhar alguém nos olhos e não sentir nenhum tipo de desconforto, sabemos que temos ali um amigo.
Não podia concluir a minha incursão pela cor sem olhar para mim própria. Sem reparar que só uso apenas cores neutras quando estou aborrecida (ou com excesso de roupa por lavar), porque o meu habitual é usar cores vivas. E que, por essa minha paixão pela cor, ao entrar na minha loja de tricot favorita (http://loja.ovelha-negra.com/pt/), todos aqueles novelinhos coloridos me fazem sentir como uma criança numa loja de gomas, a desejar comprar tudo o que vejo. Porque a cor é de facto um aspeto que conta muito para mim e que afeta muito os meus estados de espírito. E precisei deste desafio para o notar.


O primeiro curso em que me inscrevi no Skillshare foi “Creative-Writing-for-All-A-10-Day-Journaling-Challenge”(https://www.skillshare.com/classes/writing/Creative-Writing-for-All-A-10-Day-Journaling-Challenge/1042474131?via=user-profile), em que o desafio é escrever pequenos textos ao longo de 10 dias começando por “hoje notei”. Depois duma tentativa falhada de cumprir com os 10 dias de escrita, percebi que, naqueles em que efetivamente tinha cumprido, dois temas saltavam à vista: assuntos muito pessoais e cor. Assim, decidi retomar o desafio centrando-me na cor. Este texto é baseado nesses pequenos apontamentos e é o primeiro de não ficção neste blogue.

02/05/2016

Adeus!

Adeus, meu amor (sim, porque apesar de tudo continuas a ser o meu amor).

Sinto, porém, que está na hora de ir e de parar com a batalha inglória que é tentar que me ames de volta.
Sim, eu sei que até o dizes, uma e outra vez, mas são meras palavras, sinto bem que no fundo não sou mais do que um hábito, um conforto, uma mãezinha até.
Não, chega disso. Já tentei conquistar o teu amor (o real, não esse que debitas como um papagaio sem o sentir) por todas as formas, mas ou és incapaz de o sentir, ou não sou a pessoa certa para ti.
Estou cansada de vir sempre em último para ti, depois do trabalho, dos amigos, do futebol. Nunca, nunca me puseste, por um instante que fosse, à frente dos teus próprios interesses.
Enquanto eu (parva, eu sei), sempre te pus à frente de tudo, inclusive de mim própria. Talvez tenha sido esse o meu erro, talvez me tenha anulado na ânsia de te agradar e conquistar, mas nunca fui bem-sucedida.
Por isso, venho dizer-te: Basta! Não vou mais lutar para te conquistar, não vou mais viver em função dos teus desejos.
Se achares que não podes viver sem mim, pensa melhor e repara bem se não podes suprir essa falta com uma empregada doméstica, os teus amigos e o malfadado futebol.
Dei-te demasiado tempo da minha vida, achando que acabaria por conseguir o teu amor verdadeiro, finalmente percebo que não e que é altura de me afastar, para sempre.
Não me procures, deixa-me sofrer e ultrapassar isto em paz. Dá-me espaço para redescobrir quem sou.

A (por enquanto) tua

                        Mariana

25/04/2016

Amo-te!

Sou tua. Todo o meu ser sente a falta do teu, quando não estás comigo. Recordo o teu cheiro, o brilho dos teus olhos, a malícia do teu sorriso, a doçura da tua voz.
Quando estamos juntos, a minha alma rejubila e tento absorver ao máximo estas sensações, que me reconfortam na tua ausência.
Quando estamos juntos, sinto-me outra, mas simultaneamente mais Eu do que nunca. Fazes-me sentir alguém melhor, com menos defeitos, que erra menos.
Quando estamos juntos, desejo somente conseguir fazer-te feliz, dar-te alegria e muito amor, todo aquele que me enche e que só me atrevo a declarar aqui, escrevendo-te de forma singela, sem rodeios nem falsas modéstias.
Quero dizer-te assim que te amo, numa medida e força que nem os físicos conseguem ainda quantificar. Com dimensões que me assustam (e que te assustarão decerto também, caso notes a sua escala), mas que não consigo controlar, tal a intensidade deste sentimento.
Amo-te e quero que o saibas. Ainda que não sintas o mesmo, ainda que te seja indiferente. Mas não consigo deixar de dizer, uma e outra vez, o quanto te amo. O quanto te quero na minha vida, dividindo alegrias e tristezas. O quanto quero estar ao teu lado, quer quando a vida te trai e magoa, quer quando ela te sorri; quer quando o céu está escuro e chove, quer quando o sol brilha e ilumina tudo; quer seja manhã ou noite, quero estar ao teu lado em todos os momentos em que me queiras contigo.

E quero tanto, tanto, que retribuas o meu amor. Mesmo numa escala mais reduzida, aceito isso, já que admito que o meu amor seja excessivo, mas desejo o teu amor mais que qualquer outra coisa no mundo. Consegues amar-me?

18/04/2016

Idílio

Não há mais ninguém no mundo senão tu e eu, juntos esquecemos a existência de todas as outras pessoas.
Não há mais lugares no mundo para além deste quarto onde nos encontramos, sozinhos e imersos em nós, na nossa paixão e nos nossos sentimentos.
Não há mais sensações do que a intensidade do teu olhar, a doçura surpreendente da tua voz, o cheiro inebriante do teu corpo, o toque delicado das tuas mãos, o calor dos teus lábios, o sabor salgado da tua pele morena, o vigor dos teus abraços.
Não há mais palavras do que aquelas que sussurramos ao ouvido, as juras de amor entrecortadas por beijos e carícias, as promessas de repetição destes momentos. Não há poesia que se lhes compare, tal a intensidade dos sentimentos que refletem.
Não há mais emoções do que esta paixão que nos consome, este amor que transborda dos nossos corações, esta felicidade de estarmos juntos, este desejo que estes momentos não acabem nunca, mas se intensifiquem e se multipliquem.
Não há passado, tudo começa no momento em que os teus olhos se fixam nos meus, perscrutando-os até ao fundo da minha alma e lendo-me como um livro aberto, em que o personagem central és tu, tal como leio na tua uma história da qual sou a protagonista.
Não há futuro, porque este é o momento perfeito, de felicidade doce e ardente, o momento em que podíamos morrer felizes, podia até o mundo acabar e nem daríamos conta, porque estamos já no paraíso.
Não há mais nada para além do aqui e agora, em que tu e eu somos únicos e perfeitos, criados para nos darmos um ao outro, nestes momentos excecionais e irrepetíveis!

11/04/2016

Mãe

Tão pequeninos ainda! Brincam inocentes no jardim, correndo atrás da bola. Qual será o seu futuro?
Como gostava de os ter sempre assim, pequeninos, para os poder proteger do mundo e dos seus males. Mas sei que vão crescer e que estão até já expostos a tanta coisa que não posso controlar – os coleguinhas do infantário, o mau humor da educadora e do pai (e o meu, que não sou melhor do que ninguém), aos pedaços de notícias que ouvem inadvertidamente e que muitas vezes nem percebem. O quanto desejava que não sofressem, que não dessem conta do mal que há no Mundo.
Mas ao mesmo tempo, quero que tenham uma vida cheia e que passem por experiências que lhes acrescentem valor, conhecimento e felicidade. Experiências essas que muitas vezes não me chegarão sequer aos ouvidos, porque haverá uma altura em que deixarei de ser a confidente, o porto de abrigo, aquela que cura os dodóis com beijinhos e uma pomadinha.
Espero que confiem sempre em mim, nunca os desiludir, conseguir encaminhá-los bem sem os julgar, sem os criticar desnecessariamente. Mas também deixá-los dar os seus próprios passos em falso, as suas quedas e cabeçadas e ensinar-lhes os meios e a capacidade de ultrapassar esses erros, o melhor que sei e posso, porque também eu continuo a tropeçar e cair, e a dar cabeçadas, e a perder-me no caminho.
E, mais do que tudo, espero poder vê-los crescer, estar presente, ser presente, sem ser intrusiva, dar-lhes valores e competências para que sejam seres humanos felizes, úteis à sociedade. O quanto receio faltar-lhes cedo demais. Ou falhar na minha missão, esta em que embarquei quando nasceram, que encaro com tanta responsabilidade e dedicação. Porque ser Mãe é o trabalho mais difícil que existe e é impossível ser perfeita!


04/04/2016

Fuga

Foi a altura certa para fazer as malas e sair, duma vez por todas, daquela casa onde já nada a prendia, a não ser a memória do que haviam sido e as súplicas incessantes de Diogo para que não partisse.
Sofia não aguentava mais permanecer naquela relação estagnada, onde não tinham mais para partilhar, para dar um ao outro, onde as discussões eram constantes, alternadas com os amuos silenciosos de Diogo, que se queixava sempre que Sofia já não o amava, sem se aperceber que também ele já não sentia amor por ela, apenas estava preso pelo hábito.
Sofia deitou um último olhar ao apartamento vazio, aquele para o qual lhe custava cada vez mais voltar ao fim do dia, adiando o regresso sempre mais um pouco, mais uns minutos no trabalho, mais uma aula no ginásio.
Sentiu de novo o aperto no estômago dos remorsos, aproveitar a viagem de negócios de Diogo para se libertar era um ato cobarde, bem o sabia, mas também sabia que era a única forma de o fazer acontecer, porque quando começavam as súplicas ficava incapaz de agir, não pelo presente ou por perspetivas de futuro, mas pelas memórias da vida comum e dos sonhos que tinham partilhado, agora estilhaçados pelo chão e que teria que pisar para sair, ainda que por isso tivesse que se ferir e sangrar.
Pegou nas malas que continham apenas aquilo que lhe pertencia. Os objetos comuns ficavam, já iria haver discussões suficientes sem que tivessem que decidir quem ficaria com a coletânea dos Queen.
A chave ficava em cima da mesinha, com uma carta cuja redação lhe custara horas de escrita, rasgar de folhas e choro.
Quando bateu a porta, as lágrimas recomeçaram a correr, mas nem Sofia seria capaz de dizer se eram de tristeza ou de alívio.

28/03/2016

Destino

“O destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas deste mundo, não conhece a linha recta.” *
Avança com curvas e contracurvas, num percurso sinuoso, que às vezes parece que anda para trás em vez de ir em frente, seguindo os seus inexoráveis desígnios. Ou seguirá o rumo que lhe damos, consciente ou inconscientemente?
Seja algo que criamos ou algo que nos é dado, não é nunca uma linha reta, é um caminho tortuoso, com silvas que é preciso desbravar, e pedras e buracos onde tropeçar. Mas é também tantas vezes um caminho por um vale verdejante, ladeado por campos floridos, em que há sol, borboletas e pássaros a cantar.
Mais à frente podemos ter um bosque sombrio, de árvores quase fechadas sobre si, que amedronta atravessar. E aí às vezes há difíceis decisões a tomar: atravessar o bosque assustador, parar ali ou procurar um caminho alternativo, ainda que mais longo e mais duro.
Podemos culpar o destino se tivemos medo do bosque e parámos? Ou apenas se o atravessamos e formos atacados por lobos ou ladrões? Ou será o destino independente das nossas decisões e qualquer que seja o caminho que escolhemos leva-nos ao mesmo sítio? Ou será mutável com as nossas decisões, mas independente delas, abrindo a porta ao conceito de universos paralelos?
É confortável ter algo que culpar se a vida não corre bem. Foi o destino que nos juntou, foi o destino que nos separou. Foi o destino que nos levou para aqui ou para acolá. Foi o destino que matou os nossos entes queridos, naquela hora. Mas o destino também colide com o livre arbítrio de que somos dotados.
Por isso, quanto da nossa vida é responsabilidade nossa, dos nossos atos ou omissões, e quanto depende de algo que nos ultrapassa a todos e que não podemos compreender, apenas saber que anda por linhas tortas?


* José Saramago, in "Cadernos de Lanzarote"

21/03/2016

Incoerência

Fica! Mais um minuto, mais uma hora, mais um dia, mais um ano. Fica a tua vida toda!
Não me deixes entregue aos meus pensamentos e à saudade imensa de ti. Abandonada ao ritmo das marés, à incerteza de quando voltarás.
Ou, então, leva-me contigo. Para longe, para perto, para onde quiseres que estejamos juntos. Se quiseres, irei contigo até ao fim do mundo, até ao fim dos tempos.
Porque no segundo em que te vais tudo perde o sentido e deixo sequer de saber quem sou, de tão imersa que fico na saudade, na ânsia do teu regresso, no medo que não voltes. Sentimentos irracionais, bem sei, mas que me enchem e paralisam, que fazem com que a vida normal seja uma luta constante.
Quando estás comigo, fico em paz, a vida preenchida pela tua presença, pelo teu carinho, o teu riso, o teu abraço forte e doce, a tua mão quente na minha, o ombro onde posso descansar a cabeça cansada e sentir que tudo vai ficar bem.
Quando tiveres que ir de vez– porque sei que irás - vai sem medo ou remorso, seria incapaz de te prender onde não queres estar. Aprenderei a sobreviver sem ti, porque a vida é uma aprendizagem constante e habituamo-nos a tudo. Terei que lutar para me manter à tona e me adaptar à tua falta, mas confio que serei forte o suficiente para aguentar.
E quando fores, vai depressa e de uma vez só, não vás com promessas de voltar que depois não cumpras. Faz um corte limpo, diz-me que acabou, só assim te poderei respeitar. Por muito que me doa na hora, a lembrança será mais doce e quero que a recordação seja boa, porque essa é que fica.

15/03/2016

Reencontro

Sentada numa esplanada da Foz, em frente ao seu portátil, Inês batalhava com o relatório que teimava em não sair, quando se apercebeu da chegada de um novo cliente, de pasta na mão, pronto a instalar-se também a trabalhar. Olhou disfarçadamente segunda vez e pensou “parece mesmo o João”. Olhou de novo para ter certeza e acabou por perguntar:
- João?!
Surpreendido, o homem olhou para ela, reconhecendo-a imediatamente:
- Inês?! Há quanto tempo! Estás de volta ao Porto?
- Sim, é verdade. Senta-te aqui para conversarmos um bocadinho – respondeu ela. – Este relatório pode esperar um pouco.
- Já não nos vemos desde quando? – perguntou ele. – Desde o fim da faculdade, não? Parece que foi ontem e já lá vão 15 anos!
Trocaram histórias de vida pessoal– ele de como casara com a namorada da faculdade com quem tinha duas filhas quase adolescentes e de quem estava divorciado há quatro anos, ela de como deixara para trás o namorado da faculdade para ir para Lisboa e a relação acabara por morrer pela distância, sem que nenhuma outra duradoura tivesse nascido.
 Falaram da vida profissional – ele de como trocara várias vezes de emprego para adquirir a boa posição que tinha atualmente, ela de como se empenhara a fundo para conquistar o retorno à terra natal.
Relembraram histórias da faculdade, professores, colegas, aventuras e festas. A velha empatia renasceu e a conversa fluía.
João olhou para o relógio e disse:
- Tenho de ir, hoje é o meu dia de ficar com as miúdas. Mas temos de combinar encontrar-nos de novo.
Trocaram contactos, e João partiu. Inês encerrou também o seu portátil, era hora de ir para casa. O relatório teria de ser feito à noite, mas o reencontro e as perspetivas que o acompanhavam valiam o trabalho extra.

07/03/2016

Amor mudo

Apesar da ferida que, inconscientemente, me infligiste e que me deixou à beira do abismo, continuo a ansiar por ti. Culpo este medo que sempre sinto de revelar os meus sentimentos e penso que, se te tivesse mostrado o meu amor, se não tivesse sempre resistido à forte tentação de te dar um beijo apaixonado, aquela tentação que me corroía sempre que estávamos juntos, talvez agora pudesse estar contigo e não a sofrer por ti.
Se tu soubesses quão ardente essa tentação é (porque não o consigo evitar, continuo a senti-la, mais forte até a cada dia, apesar de ser mais do que nunca uma ilusão), perceberias também que o que a provoca é bem mais que uma mera atração física, é algo que nem eu consigo compreender completamente, um desejo de estar junto de ti, de falar contigo, de desnudar um  pouco da minha alma, da minha vida, do meu coração, e ao mesmo tempo absorver ao máximo tudo o que vem de ti, os teus gostos, a tua vida, as tuas ambições e desejos, e senti-los meus também, e  que partilhássemos tudo isto sem medos e de coração aberto.
Mas nunca fui mais do que um passarito tímido que não arrisca sair do ninho com receio que o voo falhe e a queda seja grande demais. Nunca tive quem me empurrasse para fora, para a aventura de tentar conquistar-te e fiquei quietinha, à espera que viesses tu procurar-me, arrancar-me aos meus medos e apresentar-me ao amor. Só que tu nunca vieste e agora é tarde de mais. Perdi-te e, pior ainda, perdi a ilusão de te ter um dia. No entanto, a minha alma continua a cantar-te permanentemente uma inaudível canção de amor.

29/02/2016

Anseio

Quando chegaste, com o teu passo leve e o teu sorriso malandro, toda a minha alma se iluminou. Como acontece, aliás, dia após dia, mesmo quando o sorriso é substituído por má disposição.
Porque preciso ver esses teus olhos de azeitona para o meu dia começar e o meu coração se encher de novo de doces sentimentos.
E, no entanto, há dias, quando chegaste, trazias um ar tímido incomum em ti, o eterno descarado. Estranhei-o, mas nada disse. O habitual café matinal foi atípico, parecia que não tinhas sobre o que falar. Até que, abruptamente, como quem arranca um penso rápido, me disseste que ias morar com uma rapariga. Alguém de quem nunca me falaras e que ocupou na tua vida o lugar que eu tanto ambicionava, mas que sempre me faltou a coragem de arriscar tentar conquistar.
Fiz-me de forte e dei-te os parabéns com um sorriso, enquanto a minha alma chorava em silêncio. Também nada mais disseste, embora se perceba, pelo modo como me contaste, que terás alguma noção do que sinto por ti, mas disfarçaste-o, o que muito apreciei.
Nessa noite, sozinha, chorei até me secarem as lágrimas e não conseguir derramar nem mais uma, apesar de ter tantas ainda por chorar.
Enquanto que nos dias anteriores deixavas em mim a cada dia um pouquinho mais desses sentimentos, nesse dia levaste a minha alma toda. Fiquei vazia, porque percebi que a minha alma é toda tua e tu não a queres, é algo que é inútil para ti, e para mim também, porque se não estou contigo, sou um corpo vazio, preenchido apenas por um sentimento que dói e fere, mas ao mesmo tempo é doce e cheio de ilusões.

Por isso anseio por cada vez que chegas, para tornar a viver!