27/06/2016

A porta enferrujada

Era uma porta enferrujada. E ela entrou. A medo. Um maravilhoso jardim surgiu diante dos seus olhos, com canteiros e arbustos e um aroma a flores que a fez pensar ter entrado no País das Maravilhas, ao ponto de se pôr a olhar em volta procurando o Coelho Branco.
Em vez dele viu, de forma igualmente inesperada, a sua avó. Não como a vira pela última vez, uma velhinha ligada a tubos numa cama de hospital, mas a senhora de idade que acolhia a adolescente rebelde com bolos caseiros e palavras apaziguadoras.
Do outro lado do jardim viu um rapazinho a acenar-lhe e a chamá-la para brincar. Percebeu que era o primo João, com quem brincara em criança. Tinham perdido contacto quando este se mudara com a família mas sabia que tinha falecido num acidente de mota há uns anos.
Ao fundo do jardim, numa mesa sob um guarda sol, o avô, com o aspeto do senhor que lhe dava ralhetes, mas também colo, mimos e rebuçados às escondidas, e que partira quando ela era ainda criança. Aos seus pés, abanando entusiasticamente a cauda, o Bobi, o cão do avô, que não lhe sobrevivera muito tempo, apesar de gostar muito dela, a sua dedicação era ao dono.
Dirigiu-se à avó - Vim para ficar, avó Maria?
- Não, minha querida, ainda tens muito que viver.
Sentiu como que um puxão e começou a ver o jardim a ficar enevoado.
- Avó, eu queria ficar!
- Mas ainda não é altura. Vieste só fazer uma visita e deixar-nos lembrar-te que gostamos muito de ti e que desejamos que aproveites a tua vida e sejas feliz!
Sentiu um novo puxão e acordou numa cama de hospital.

E nunca ninguém percebeu porque é que as suas primeiras palavras foram “quem diria que a porta do Céu era velha e enferrujada?”.

A lei do abraço

Hoje fomos multados. E eu, enquanto o policia passava a multa, mal conseguia conter o riso. Quer pelo motivo pelo qual te abracei na via pública, quer pelo ridículo de isso ser proibido.
Porque diabo te lembraste tu de dizeres que me amas no meio da rua? Que outra reação podia eu ter senão abraçar-te, e apertar-te bem junto ao peito para ter a certeza que eras tu mesmo e não um sonho? Bem podias ter reservado essas palavras para um local mais íntimo, onde pudéssemos cometer ilegalidades sem testemunhas. Olha que com o dinheiro da multa íamos um belo fim de semana para fora.
E tu sabes bem que eu sou uma fora da lei, adoro abraçar. Não consigo conceber como é que alguém se lembrou de proibir tal coisa! Um ato que só faz bem, uma transmissão de carinho, de apoio, de amor! Como pode tal coisa ser ilegal?
Não, andarei sempre na ilegalidade. Discreta, que o dinheiro não dá para as multas, e qualquer dia acumulo e vou parar à cadeia. E como é que me vais abraçar na cadeia, com os guardas todos a ver?
Não, só nos podemos abraçar em privado. E como eu gosto de te abraçar, de rodear o teu pescoço com os meus braços e encostar o corpo todo ao teu! Que melhor forma tenho de te mostrar que também te amo, ainda que nunca o tenha dito por palavras?

Não, temos que lançar petições e fazer manifestações, que a vida sem abraços não é vida! Onde é que já se viu, uma mãe não poder abraçar os filhos, os namorados não se poderem abraçar? Vamos lutar pelo direito ao abraço, porque quero abraçar-te sempre que me apetecer, esteja onde estiver!


Nota: Este texto era suposto ter feito parte do 31º CNEC, mas devido a um ataque de trenguice (crónica, provavelmente) parece que não o enviei, pelo que não foi avaliado. Dado que foi inspirado pelo concurso, mantive a etiqueta que o classifica como tal.

20/06/2016

Migalhas

“And I wish you all the love in the world,
But most of all, I wish it from myself.”
Songbird, by Fleetwood Mac *

Será isto egoísmo? Sim, tem inequivocamente uma componente egoísta, porque apesar de te desejar toda a felicidade (e amor) quero que tenham origem em mim.
Por isso, mesmo sabendo que és feliz e amado, sou eu profundamente infeliz por não poder ser a fonte da tua felicidade. Uma infelicidade que por vezes me tolhe de tal forma que me impede de aproveitar as migalhas que recebo da tua amizade, as migalhas que são o meu único sustento e que são normalmente doces e suficientes para sobreviver, mas ocasionalmente são amargas e não as consigo tragar, deixando-me vazia, insatisfeita, à procura de algo mais que me alimente e tantas vezes sem o encontrar.
Mesmo as migalhas que me dás, a maioria das vezes tenho que ser eu a mendigá-las, qual pedinte de rua a pedir para uma sopa. E nem percebes o que me estás a dar. Não tens noção do quanto vivo para essas migalhinhas, mesmo quando me partem o coração e me deixam desfeita em pedaços, pedaços que cada dia se estilhaçam mais, ao ponto de não saber se ainda continuo a conseguir reconstruir-me toda.
Acho que não. Sinto que a cada dia há mais um bocadinho de mim que se perde, algures pelo caminho, no espaço entre mim e ti, nesse vazio que tu não vês que existe.
Porque não me afasto, perguntam-me? Porque apesar de tudo são as migalhas que me mantêm viva, porque prefiro sofrer e sentir, do que não sentir e andar por aí sem ansiar por nada. Porque prefiro ter algumas migalhinhas amargas que me fazem chorar, sofrer e passar fome, compensadas com as migalhas doces, do que não ter nada.

Um dia encontrarei quem me dê mais que migalhas. Provavelmente não serás tu. Mas até lá, és o meu sustento.



*  https://www.youtube.com/watch?v=51vjhSlUCcE

14/06/2016

Início?

Amanhecia, quando tocou o despertador, que desliguei rapidamente para não te incomodar. Adormecido ao meu lado, eras um sonho tornado realidade, tinha dificuldade até em crer que estavas mesmo ali. Acordada, fiquei a contemplar-te, as longas pestanas no teu rosto moreno, a curvatura da tua boca, os cabelos revoltos no travesseiro, a mão forte sobre o lençol branco. A recordar a noite anterior, lembrando-me de tudo o que dissemos, de tudo o que fizemos, de tudo o que senti por finalmente te ter comigo.
Ansiei tanto por esses momentos, há muito que esperava que reparasses em mim, nos meus sentimentos e que os retribuísses, e que juntos pudéssemos ter uma noite como esta, em que fossemos mais do que dois seres isolados, fossemos seres unidos por uma paixão
Abriste os olhos devagar, como se sentisses o peso do meu olhar. Azuis, brilhantes como safiras. Acordado por fim, sorriste-me de forma que me fez sentir a mulher mais bela do mundo e inclinaste-te sobre mim para me beijar.
Ambos nos levantamos, quase sem falar, como se todos os passos nos fossem habituais, eu dirigi-me à cozinha, para preparar o pequeno almoço, tu à casa de banho, para um duche.
Amor eterno, foi a tisana que escolheste, com uma piscadela de olho marota, quando te juntaste a mim na cozinha, descalço, cabelos molhados, apenas de jeans. Apenas olhar para ti lembrava-me o que passáramos juntos e trazia-me todas essas emoções à flor da pele.
Acabaste de te vestir e vieste despedir-te de mim ao quarto, onde também me arranjava para ir para o trabalho. Abraçaste-me e beijaste-me. Até logo, disseste.

Atónita, fiquei sem saber exatamente o que significavam as tuas palavras. Amanhã será igual a hoje? Antecipas um futuro em conjunto? Assim, de repente, sem sequer falarmos sobre isso?

06/06/2016

Sonho de Amor

“Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor.” *

Leu ele, em tom romântico, enquanto partilhava igualmente a citação na sua página do Facebook.
- Então tu não me amas autenticamente – retorquiu ela, ocupada a arrumar a cozinha.
- O que queres dizer com isso?
- Revês-te mesmo nessa citação?
- Mas tens razão de queixa? – questionou ele, em tom cético e quase magoado.
- Não foi isso que eu disse. Revês-te na citação ou não?
- Mas achas que não?
- És orgulhoso que te fartas, nunca admites que erras ou te enganas. Demoras mais tempo a arranjares-te do que eu, adoras exibir bons carros e bons telemóveis. Ainda hoje reclamas que me esqueci do nosso aniversário há três anos. Achas mesmo que te enquadras nessa citação? – respondeu ela, enquanto enxugava as mãos, encostada ao lava louça.
- Pensas assim tão mal de mim? – interrogou ele, com ar espantado.
- Não – retorquiu ela, com um sorriso, aproximando-se dele e colocando-lhe uma mão no ombro, com carinho. – Acho que és humano e tens defeitos, como qualquer pessoa. Por coincidência, os teus defeitos são precisamente os descritos nessa frase. E não passaram por me amares. Daí a minha conclusão.
Ele pegou-lhe na mão que estava sobre o seu ombro e beijou-a. Depois, pondo-se de pé, rodeou-lhe a cintura com os braços, num gesto terno.
- Mas isso é porque entre nós não há um autêntico sonho de amor.
Ela arregalou os olhos, surpreendida.
- Há um autêntico amor, não um mero sonho. Sonho é algo que vive de ilusão e fantasia. O nosso amor é real, sincero. Já não andamos a disfarçar quem somos para parecermos melhores, aceitamo-nos tal como somos. E isso é melhor ainda que qualquer sonho de amor, não achas?
Ela pôs-lhe os braços à volta do pescoço e respondeu com um beijo real e sincero.


*Miguel Torga, in “Diário (1948)”